Por: Grazielly Alessandra Baggenstoss¹
Há algo nos últimos acontecimentos que escancaram formas de violências que conecta corpos de crianças e mulheres. Por conta disso, tem sido dito que estamos em guerra, ou que nossos corpos são territórios em uma guerra. E essa guerra, que acontece em diversas dimensões e espaços, é praticada com uma violência voltada para uma conformação ideológica a uma determinada forma de viver esses corpos.
É o uso da violência enquanto um poder do domínio de disciplina²: de um lado, meninas e mulheres; de outro, pessoas, especialmente autoridade, que praticam atos em nome dessa ordenação violenta.
Mas não diria que enfrentamos uma fúria contra nós, como tuitou a Professora Débora Diniz. Uma fúria, a meu sentir, contemplaria uma força de vida. Assim, a fúria cabe a nós. Não, não estava lutando contra uma força de vida, mas contra um projeto frio, calculista e organizado sistêmico e historicamente que não contempla a vida, mas sim o seu controle. E, além de não contemplar a vida, impõe-nos em um molde de subserviência de utilidade a um determinado sistema.
As formas de vitimização destes corpos operam com estratégias de manutenção desse projeto que está ordenado na dominação da vida das pessoas, de sua possibilidade de existências e, também, de seus territórios. Em cinco cenas brutais desses seis meses de 2022, temos corpos de meninas e mulheres sendo submetidos a práticas para serem instrumentalizados nessa serventia:
1) Uma menina de 12 anos, da etnia indígena Yanomami, foi³ estuprada por garimpeiros na região de Waikás, em Roraima, segundo vídeo do presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’Kwana, Júnior Hekurari Yanomami, em 25 de abril de 2022. Na mesma época, Júnior Hekurari Yanomami também esteve na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado e rogou por providências para a retirada de dezenas de garimpeiros ilegais do território indígena mencionado. E denuncia que “eles (os garimpeiros) violentam mulheres, adolescentes e crianças. Já temos meninas de 13 e 14 anos grávidas de garimpeiros. Meninas de 15 anos já têm filhos de garimpeiros nascidos, com 1 ano de idade. Viemos clamar aos senhores”4. Não há informações disponíveis sobre o encaminhamento das denúncias.
2) Pelo Intercept e pelo Portal Catarinas, em 20 de junho de 2022, foi publicada a notícia do impedimento da realização do aborto legal, praticada por manobras (anti)jurídicas de uma juíza e de uma promotora de justiça, no caso de uma menina de 10 anos que engravidou em decorrência de estupro5.
Como se trata de uma criança, o estupro é presumido (art. 217-A, Código Penal). Para casos de gravidez decorrente estupro, o aborto legal é direito previsto na lei: no art. 128, II, Código Penal.6 A caracterização do estupro presumido e o direito ao aborto legal: (a) independe da idade do corpo que gesta (ou seja, se é criança, adolescente ou adulto), (b) independe da quantidade de semanas da gestação, (c) não exige autorização judicial para abortamento nesses casos; (d) não importa a idade do agente que cometeu a violência.
Com o impedimento do abortamento, a menina foi vítima de violência institucional, crime tipificado na Lei n° 14.321, de 31 de março de 2022, a qual insere o artigo 15-A na Lei sobre Crimes de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019)7. Dentre outras operações violentas, a violência institucional caracteriza-se pela negação do aborto legal, pelo encaminhamento da criança a um abrigo para postergar-impedir o abortamento, pela arguição em audiência desnecessária praticada pela juíza e pela promotora de justiça – que pode ser vista em vídeo em diversos canais da mídia8. Na tentativa de justificar o injustificável, essas autoridades argumentaram que seria possível a criança “aguentar mais um pouquinho” para que o feto tivesse viabilidade (em um período de tempo que não é consenso nem lei) para que fosse encaminhado à doação e, assim, o que era a tristeza dessa menina e dessa mãe, seria alegria de adotantes… isso se as instituições de abrigamento não tivessem nenhuma criança ou adolescente passíveis de adoção.
Magistrada e membra do MPSC utilizam o termo “homicídio” para caracterizar, indevidamente, o aborto. Mas isso não é um erro de escolha de termos técnicos: é uma deliberação referente a suas inclinações religiosas e ideológicas, que buscaram alcançar independentemente de quem estavam violentando.
Em 2019, aconteceu caso semelhante com uma criança de 10 anos, no Espírito Santo, que foi estuprada pelo tio. Sendo um estupro presumido, nos mesmos termos, houve o direito ao aborto legal, desta vez reconhecida pelo Sistema Judiciário. Contudo, os dados da menina foram expostos na internet e ela e sua família precisaram integrar o Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência (Provita), oferecido pelo governo do Espírito Santo, que apoia a família e a vítima na mudança de identidade e de endereço. A menina precisou viajar para Recife para realizar a interrupção da gravidez e manifestantes fundamentalistas, organizados como grupo contrário ao aborto, realizaram um protesto em frente à unidade de saúde após a divulgação, por Sara Giromini, do nome da criança e da sua localidade, causando risco de morte à criança e perturbando a segurança pública9.
3) Na sexta-feira passada, ainda, surge na mídia nacional o caso da atriz Klara Castanho. Em uma Carta Aberta publicada em seu instagram, a atriz relatou ter sido estuprada e ter engravidado do agressor. Quando do nascimento da criança, informou que entregou o bebê para adoção. Qualquer genitora pode entregar, conforme procedimento disposto no art. 19-A da Lei 13.509, de 2017, a criança que gerou para adoção. São mulheres que engravidam sem planejamento ou de modo indesejado e/ou que não podem ou não desejam ficar com os bebés a opção de elas fazerem entrega das crianças para adoção. À mulher, há o direito de sigilo sobre o nome do pai e também é garantido o sigilo a todas as pessoas sobre a entrega voluntária. Klara decidiu trazer a público a sua história após sites de fofoca terem divulgado a gravidez e o encaminhamento da adoção. Klara foi duramente julgada nas redes sociais pela gravidez e pela entrega voluntária do bebê.
4) Na mesma semana passada, no plano internacional, é derrubada, na Suprema Corte dos Estados Unidos, a decisão “Roe contra Wade” (1973), que garantia no país o direito ao aborto. O overturn é um legado de Trump, o qual, quando presidente, nomeou 5 (cinco) ministros conservadores, sendo uma mulher. Como consequência, os Estados podem definir a permissão ou não do procedimento. Ato contínuo ao julgamento, Clarence Thomas, juiz da Suprema Corte, sugeriu que sejam questionados outros direitos já consolidados, como o direito da contracepção, de relacionamentos e de casamentos homoafetivos. Em que pese a discussão resida no Norte Global, o imperialismo nos coloca em uma densidade, quase sem filtro, de aceitação dos símbolos estadunidenses, inclusive dos símbolos relacionados a direitos humanos.
5) Em um salto ao início do ano, na Guerra da Ucrânia, vemos, também no plano internacional, outras notícias que não mais saltam aos trend topics: o estupro como arma de guerra10. Diferentemente do que pensam algumas pessoas, o estupro contra crianças e contra mulheres, em espaços de conflito bélico, não é um dano colateral ou um “mal menor” diante do cenário de conflito. O estupro é uma tática de guerra. É uma pedagogia da crueldade¹¹ para os corpos diretamente atingidos e também para a comunidade a qual pertencem que gera consequências intergeracionais. São os casos de Kosovo, Nigéria, Etiópia¹², além de ex-Iugoslávia e em Ruanda, que “são paradigmáticas dessas transformações e inauguram um novo tipo de ação bélica em que a agressão sexual passa a ocupar uma posição central como arma de guerra que produz crueldade e letalidade, dentro de uma forma de dano letal que é simultaneamente material e moral”¹³.
Como estratégias de guerra:
[…] “estupro e violência sexual” (“estupro e outros atos desumanos” ) praticados como parte de um processo de ocupação, extermínio ou subjugação de um povo por outro, foram gradativamente incorporados à legislação sobre crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade. Estupro, “como tortura e escravidão”, e “outras formas de violência sexual, como nudez forçada e entretenimento sexual, como tratamento desumano”, no Estatuto do Tribunal Ad Hoc Internacional para a ex-Iugoslávia e, posteriormente, como “atos constituindo genocídio” no Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, passando também a ser considerados crimes de guerra e tipos de tratamento humilhante e degradante (“ataques à dignidade pessoal, em particular estupro, tratamento humilhante e degradante e abuso desonesto”) (Copelon, 2000: 8 e 11) .¹4
Pois bem. Nas cinco cenas: como um território político, os corpos de crianças e mulheres vulnerabilizadas por relações de poder e por instituições, em que autoridades ditam seus direitos de existência de liberdade, direitos sexuais e reprodutivos por meio de violência sexual. Poderes instituídos canalizam, assim, as mais diversas justificativas para reduzir esses corpos a um serviço instrumental cuja voz da pessoa vitimizada é a única não ouvida; é o corpo não protegido; é o corpo que deve servir para algo – procriação, ao menos.
Não ser ouvida; não ser protegida; tornar-se instrumento: são sinais da colonialidade, mentalidade que usurpa a autonomia de uma pessoa e um grupo social de autonominar-se; de não ser submetido a imposição de ser, saber e poder; de afirmar sua própria significação de existência. Pela colonialidade, o campo jurídico é facilmente instrumentalizado por interesses escusos que não a dignidade das crianças nem das mulheres. Além das decisões mencionadas, há projetos de lei que são sistematicamente encaminhados com o mesmo viés15: a uma subserviência de utilidade a um determinado sistema. Para isso, direitos são desrespeitados, corpos são violados e, consequentemente, docilizados, para que o sistema de controle social continue16.
E essa discussão jurídica no Brasil não é recente. No processo constituinte da nossa Constituição, por exemplo, eram pautas dos movimentos negros e do Lobby do Batom17 garantias no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, em particular quanto ao aborto, por causa das resistências oferecidas por alguns dos demais constituintes18. Atualmente, a discussão jurídica sobre a descriminalização do aborto está na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, e envolve diversos fatores históricos, culturais, jurídicos, econômicos, políticos, religiosos, sendo, assim, uma questão de alta complexidade a ser tratada. O processo está parado no STF há cerca de dois anos.
Na discussão, atenta-se sobre os significados relativos à ideia de vida, que é estritamente personificada na figura da criança. Às mulheres (e crianças já nascidas!), estão associadas as ideias tão somente de função materna e movimentos fundamentalistas contra aborto demonstram que sua autonomia não é suficiente para o abortamento. No entanto, não percebem a questão da saúde pública e individual, sexual e reprodutiva. Há uma desconsideração sobre projetos de vida que não se pautem na limitação do que consideram feminino. Assim, o útero “passa a ser visto como um campo sistémico para uma potencial implantação de uma vida ameaçada e torna-se portanto público, alvo de debate e de intervenção judicial. A mãe é reduzida a um sistema de aprovisionamento dessa vida. Dessa forma desaparece como sujeito e surge como objecto a ser sancionado […]19. Desconsidera-se, inclusive, a própria seleção jurídica, que é pela autonomia da gestante e, excepcionalmente, em prol dos direitos do nascituro.
Nessa sanção, são associadas ideias coloniais de “impureza e ilicitude, assentes na noção de pecado, associadas ao aborto e ao controlo dos nascimentos são estratégias de condenação e de penalização espiritual/religiosa”20. O domínio de poder disciplinar aí se coloca, vigiando e controlando quaisquer possibilidades de vida que não seja a imposta pelo sistema. Por esse controle, importa destacar que se perpetua a dominação tradicional de gênero com apoio a representações antigas sobre o que significa ser mulher, cujo significado é constantemente questionado nas discussões teóricas e de movimentos feministas – por isso, também, as reações ofensivas contra esses movimentos.
Desse contexto, os registros de discussão sobre o controle dos corpos das mulheres, especificamente, acompanham a instituição do Estado Moderno Ocidental, os processos de colonização e a instituição do direito nos espaços e nos corpos invadidos21. A posição contra possibilidades de vida não é natural, mas é enraizada especialmente em nossas instituições e na reprodução de profissionais que ocupam locais de autoridade.
Não é possível, assim, adormecer, mas entender essa conexão das cenas e refletir estrategicamente: o que fazer com essa nossa fúria? E perguntar às autoridades: por que vocês são contra as vidas?